Sempre gostei de estudar, refletir e falar sobre morte. Ha quem diga que sou mórbida, mas não é verdade. Sério! Amo a vida, as pessoas, o mundo. A questão é que encaro a morte como algo natural (pois assim é), mas não somente: também a vejo como oportunidade. Sim, oportunidade de ressignificar, de reconstruir meu modo de viver a partir desta perspectiva. Porque, diante da realidade da morte, o que passa a ser importante, realmente?
Nós, nossa essência e o vivido. O cru, o desnudo, o verso e o inverso do verdadeiro existir. O dizer um eu te amo; te perdoo ou sinto muito...
Diante da morte a cor da roupa, o melindre, o modelo do carro, a barba malfeita, a discussão política ou a marca do fogão perdem toda a importância. O que fica são as relações, as emoções, o falado, o sentido, o sagrado, o amado. Pergunte a quem só tem uns poucos meses de vida sobre o que passou a ser importante, de fato, e prepare-se para conhecer o âmago da existência.
Anos atrás atendi uma senhora de 69 anos, paciente terminal, que me procurou para falar sobre o próprio processo de morrer. Disse-me ela que estava sem ouvidos disponíveis para isso em casa, já que as filhas tinham horror ao tema, pedindo para ela se calar sempre que entrava no assunto. Sim, ela estava morrendo. E todos sabiam disto – eu, ela, os amigos, as filhas, os genros e os netos. Mas falar a respeito era um pecado, uma blasfêmia, um interdito. “Vai que atraímos a morte...” – pensam alguns...
Então falamos nós, no consultório. E muito.
O que realmente importava para ela? Encontrar um irmão sumido há décadas para dizer que ele era importante, pedir perdão ao ex marido pelas presepadas que tinha cometido graças a seu temperamento difícil, conhecer Blumenau (terra de seus pais) e curtir filhas e netos. Nada mais importante que os 4 temas. Listamos suas prioridades e começamos a traçar metas - todas em caráter de urgência, claro. Ajudei-a em todos os itens: procuramos o irmão, até encontra-lo; encorajei-a a dizer ao pai de suas filhas sobre seus sentimentos, suas verdades; a fazer a viagem e também estar perto da família, mesmo que esta se negasse ao diálogo sobre o tema.
E assim foi. Até a data de sua morte, tivemos tantos diálogos ricos, tantas vivências incríveis! Perto do final, num abraço apertado e emocionado, disse-me que percebeu ter vivido sua própria verdade (em profundidade) somente naqueles últimos dois meses. E eu, em lágrimas, agradeci profundamente a oportunidade que ela me deu, por tanto que aprendi, por tanto que me revisitei naqueles dias...
A verdade é que a morte fala conosco, de várias maneiras. Pena que poucos de nós temos ouvidos de ouvi-la.
Ela nos envia diversos recados antes da sua “visita fatal”, através de sustos, acidentes, doenças ou mesmo pesadelos. Todos são como que lembretes de sua inevitável chegada. As vezes nos dá um toque “mais endurecido” quando leva consigo um amigo ou parente querido.
Existem também os recados sutis, que nos chegam através de filmes, obras de arte, músicas ou textos (como este meu, por exemplo).
Aliás, no fantástico documentário I Am – Você tem o poder de mudar o mundo, de Tom Shadyac (diretor de sucesso de Hollywood), nos deparamos exatamente com isso: ele, que ficou milionário com a produção do filme Ace Ventura, levando o Oscar, quando esteve próximo da própria morte passou a questionar a vida que andava levando. Assim que melhorou de uma depressão profunda por conta de um acidente de bicicleta (concussão cerebral), saiu pelo mundo, entrevistando grandes mentes dos dias de hoje, incluindo escritores, poetas, professores líderes religiosos e cientistas (Howard Zinn, Lynn McTaggart, Desmond Tutu, Thom Harmann, Coleman Barks), buscando descobrir o fundamental problema endêmico que causa todos os outros problemas mundiais. Saiu em busca de respostas para perguntas fundamentais que surgiram em sua mente, quando em depressão:
“O que está errado no mundo? “ e “Que podemos fazer sobre isso?”
Tom também se indagava se “O sentido da vida é competir ou cooperar...”
Vale assistir, pois as descobertas são incríveis...
Dentre outras coisas, através de sua quase-morte, Tom pôde se deparar com o real propósito da própria vida. Para ele, seus talentos sempre estiveram claros, sempre soube quais eram suas facilidades no mundo. Entretanto, até ali usara seus dons a serviço do próprio enriquecimento (material), não para enriquecer o mundo, elevando-o. I Am foi, então, sua redenção, seu caminho de volta ao essencial. Por fim, opta pela Simplicidade Voluntária, o que resultou em paz íntima, dentro de um sentido maior.
Neste ponto de nossas reflexões, creio que cabe distinguirmos conceitos que comumente são citados como sinônimos, a fim de evitarmos confusões: os conceitos de propósito e de sentido.
Sentido é aquilo que nos movimenta e orienta para que, através de reflexões, possamos tomar decisões, agindo com propósito. Trata-se de uma essência que nos move, de uma base que nos orienta para nossas realizações. Por exemplo: o sentido de vida de uma pessoa pode estar ligado ao amor a outras criaturas, focado na educação de almas. Seu propósito pode ser o de estudar profundamente o tema, dar aulas e ainda construir uma grande escola, mantida por associados, cuja base pedagógica seja de vanguarda. No mesmo documentário percebemos que Tom encontra o próprio sentido de vida e seu propósito se altera, radicalmente.
Então, para sedimentar o tema, proponho um exercício de imaginação que provavelmente vai achar curioso: Se ela (a morte) batesse na sua porta hoje, o que diria para que não levasse você embora, agora? Como conseguiria convencê-la a deixar você ficar por aqui? Mas veja: não vale dizer que precisa cuidar do filho (me perdoe, Patrick[1]), do marido, da esposa, da namorada... Isso porque sempre podemos ser substituídos em determinadas tarefas, acredite, inclusive no cuidado dos que amamos. Escolha motivos que dizem respeito tão somente a você, àquilo que executa e que enriquece sua alma. O que verdadeiramente precisa de você para ser realizado, aprendido, introjetado.
E então, o que pode dizer para convencê-la?
Tudo o que estiver ligado ao seu propósito de vida!
Por exemplo, posso dizer à morte que preciso ficar para terminar meu livro, começar o novo curso de Gestalt, finalizar o projeto Terapia Pedagógica com a Universidade Livre Pampédia ou porque quero muito ir até à Índia, Nepal e Tibet.
Aliás, e por falar em Gestalt e em propósito de vida, Joan garriga, o introdutor da Gestalt na Espanha, escritor do magnifico livro “Onde estão as moedas?” diz que a boa viagem de uma alma na Terra compreende três eixos, essenciais:
Descobrir os talentos, colocando-os a serviço do mundo; descobrir as feridas da alma, sanando-as, e, por fim, aceitar tudo o que a vida nos propõe e que não podemos alterar. Concordo com ele.
Diante disto, pergunto a você:
Já descobriu quais são seus talentos? Consegue reconhecê-los, colocando-os a serviço do seu propósito existencial?
Quais são suas feridas? Estás trabalhando para saná-las?
E, por fim: Já consegues aceitar aquilo que a vida lhe traz, sem revoltar-se, sem acumular raivas, nem muxoxos?
São perguntas fundamentais que precisamos nos fazer (buscando respondê-las), antes da inevitável visita daquela que tudo transforma.
Enquanto tempo existir...
A quem quiser ir mais fundo, seguem links para viagem:
Sobre o I Am (documentário completo, no VIMEO): https://vimeo.com/167876002 Dentro da questão do documentário, cito algumas personalidades. Aqui vão os links sobre eles:
Howard Zinn: https://pt.wikipedia.org/wiki/Howard_Zinn Lynne McTaggart: https://en.wikipedia.org/wiki/Lynne_McTaggart Desmond Tutu: https://pt.wikipedia.org/wiki/Desmond_Tutu Coleman Barks: https://pt.wikipedia.org/wiki/Coleman_Barks Sobre o livro do Joan Garriga: https://pt.scribd.com/document/318198014/Onde-Estao-as-Moedas-Joan-Garriga-Bacardi
[1] A provocação refere-se ao artigo “Eu, pai.” de Patrick Mesquita. Confira: https://editor.wix.com/html/editor/web/renderer/edit/70e2cd83-4f9a-4892-97df-c148b78d4e9a?metaSiteId=081419be-b740-40d9-a969-a0d7ab57a768&editorSessionId=CA077FF3-244A-48D1-913F-324CF46FA69D
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